Em entrevista
concedida ao jornal "Folha de São Paulo", o Cardeal Dom Raymundo
Damasceno trata de várias questões relacionadas ao momento presente vivido pela
Igreja, elogia o Papa Bento XVI e fala da expectativa da eleição do novo Papa.
Folha – O que
significa “sinais dos tempos” para o Senhor?
Dom Raymundo
Damasceno Assis
– Significa mudanças profundas que todos nós experimentamos. Estamos falando
hoje de uma mudança de época, e não de uma época de mudanças. Não são mudanças
superficiais, mas que atingem a pessoa, os seus valores, o seu modo de viver, o
seu estilo de vida, a sua maneira de julgar as coisas e de se relacionar com
Deus, com o próximo, com a natureza.
O avanço das
comunicações está afetando as pessoas no comportamento, nos valores, nas
relações. Basta pensarmos hoje no celular, na internet, em todos esses meios
modernos de comunicação, blog, YouTube etc.
Há a crise
pela qual a família passa, o modelo de família hoje. São muitas as mudanças que
estamos enfrentando, e a igreja tem de estar atenta a isso. São sinais dos
tempos que nos falam também e que, portanto, o Papa e nós, os bispos, temos de
estar atentos para responder pastoralmente.
São muitos os
desafios, não podemos desconhecer que a igreja também vive neste mundo, numa
realidade histórica, não é só humana e divina. E a missão da igreja é responder
a esses desafios com o anúncio do Evangelho. Sem perder a fidelidade do
Evangelho, mas tem de atualizá-lo. Como fazer? Com que linguagem? De que
maneira? Esses são os grandes desafios que nós temos pela frente.
Qual legado o
Papa Bento 16 deixará para a igreja?
Ele nos deixa
um legado muito rico quanto ao magistério. Grande teólogo, grande pensador,
mesmo antes de ser Papa, como sacerdote, como professor em uma das principais universidades
da Alemanha. Depois, como Cardeal em Munique e prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, ele publicou muitos textos, muitos livros.
Como Papa,
infelizmente não deixou as três encíclicas que esperávamos. Deixou uma sobre a
caridade, sobre a esperança, mas faltou a encíclica sobre a fé. As homilias, as
audiências gerais às quartas-feiras são riquíssimas.
Muitos
comparavam o Papa Bento 16 aos grandes padres do início da igreja, tamanha a
riqueza teológica. Será apreciado ainda mais com o passar do tempo.
O Papa Bento
16 é chamado de conservador, mas inovou ao renunciar pela primeira vez em mais
de 600 anos. O ato abriu uma discussão sobre os rumos da igreja, como a fala
recente de um Cardeal escocês a favor do fim do celibato?
Primeiramente,
você vê que esse termo conservador/progressista é relativo. Muitas vezes,
chama-se um Papa de conservador e ele faz inovações extraordinárias.
João 23
(1958-63) era considerado conservador. Ele começou a usar aquela toca que
nenhum Papa mais usava e estabeleceu o latim para a igreja, para Roma, num
sínodo em que ele realizou.
E, no entanto,
foi ele quem convocou o Concílio Vaticano 2º, que maior repercussão teve na
vida da igreja.
O Papa Bento
16 realmente inovou nesse sentido. Ninguém esperava essa renúncia. Sabíamos que
o Papa estava fragilizado fisicamente, faltava força, vigor, como ele disse, do
ponto de vista físico e também de espírito.
Isso todo
mundo sentia e via pela televisão, mas não se esperava que viria a renunciar.
Foi um gesto de humildade, porque reconheceu as suas limitações e não ficou
apegado ao poder. Quantos ficam apegados ao poder mesmo estando doente, que não
largam de jeito nenhum, que se acham insubstituíveis?
Foi também um
gesto de coragem, porque ele tem consciência da repercussão que teria o seu
ato. Estamos vendo pelos meios de comunicação o impacto que a renúncia teve em
toda a igreja.
E é um sinal
profético. Se nós estamos preocupados com poder, com carreirismo na igreja,
como ele fez aceno em algumas homilias, que é um dos pecados da igreja, essa
busca do poder que cria divisão na igreja, então ele diz: “Eu renuncio, o cargo
não é fundamental pra mim, eu cumpri a minha missão até quando eu podia
cumprir. O apego ao poder, as honras, a glória do cargo, entrego a quem
conduzir melhor a igreja no momento de hoje”.
Com a
consciência tranquila de quem cumpriu seu dever diante de nós. É um exemplo pra
todos. Aqui em Aparecida, o Papa nos deu um exemplo de humildade, de
simplicidade, até um pouco tímido.
O Sr.
mencionou o carreirismo. Esse é o grande motivo da divisão interna?
O Papa Bento
16 fez uma alusão a isso. Muitas vezes a pessoa está usando o seu cargo não
para servir. [Mas] muitas vezes, quem sabe, em busca de benesses, até para se
promover mais ainda.
Ele não citou
nomes, mas deu a entender que a comunhão é fundamental na igreja, que é
fundamental entender na igreja que todo cargo é serviço, serviço à igreja, à
comunidade, à sociedade.
Cargo na
igreja não é honra, não é poder no sentido como entendemos, de opressão às
outras pessoas, ou de ser favorecido pelo cargo. Nesse sentido, a sua renúncia
é um gesto profético.
Em 2007, o Sr.
disse que havia chegado a hora de a América Latina evangelizar a Europa. Essa
percepção deveria ser levada em conta na escolha do Papa?
Eu digo sempre
que o continente não é decisivo, mas a América Latina está contribuindo hoje
para a evangelização da Europa, da África, da Ásia. É um fato, é verdade.
Quantos
brasileiros hoje, padres, membros de novas comunidades e leigos consagrados
estão na Europa no campo da evangelização, da comunicação?
Então a
América Latina está contribuindo para a Europa, embora não tanto quanto nós
gostaríamos.
Mas isso não
quer dizer que seja o critério decisivo para a escolha do Papa.
Então quais
são esses critérios?
Um perfil que
atenda às necessidades de hoje da igreja. Isso se faz num processo de
discernimento, num clima de oração e reflexão, de partilha de experiências
durante o conclave, talvez até antes do conclave, nos contatos entre os
cardeais.
É muito
difícil antecipar isso, mas, de um modo geral, é uma pessoa de experiência
pastoral, de diálogo, que promova o diálogo no mundo de hoje entre os povos,
entre as religiões, cristãs e não cristãs, uma pessoa sensível aos problemas
sociais. E preparado também do ponto de vista teológico, filosófico,
intelectual. É um conjunto de elementos.
Como
presidente da CNBB, o que o Senhor quer falar ao novo Papa?
Os nossos
anseios são de uma igreja missionária, dinâmica, uma igreja capaz de renovar-se
para cumprir sua missão, que quer justamente estar no estado permanente de
missão. Essa missão não é só dos bispos, mas de todo cristão e de todo
batizado.
Uma igreja
solidária com os pobres sobretudo, que esteja a serviço do mundo, e não o mundo
a serviço da igreja.
Fonte: CNBB / Folha de São Paulo
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